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Circe, uma ninfa, enfrenta as alegrias e a solidão da independência nesta nova versão do mito grego
Isso mesmo, nova versão do mito grego. Em seu livro Circe, Madeline Miller reconta o mito da feiticeira filha de Perseis, uma náiade, e Hélio, o Sol. A escritora decide partir de um eco-sistema já conhecido dos mitos gregos, mas ao colocar Circe no centro desta narrativa, somos apresentados a uma perspectiva feminista dos clássicos acontecimentos, como a chegada de Odisseu à Eana, narrada no capítulo X da Odisseia de Homero, Prometeu e seu castigo sem fim, Dédalo e seu filho Ícaro, Minotauro e Ariadne, entre muitos outros.
Escolho dizer “uma nova versão do mito” por entender essas narrativas como histórias vivas que nos são contadas e perpassam infindáveis milênios sem deixar de perder sua magia e atualidade. No entanto, como toda história, “quem conta um conto, aumenta um ponto” e, dessa forma, elas vão sendo desenvolvidas, repaginadas e antigos acontecimentos recebem novos olhares.
Toda narrativa também diz muito sobre o momento histórico a partir do qual está sendo narrada. Dessa forma, Circe oferece um retrato das mulheres da antiguidade, mas através de lentes modernas o que permite o surgimento de novas indagações a respeito daquele período e do nosso, tornando o mito algo tão próximo ao mesmo tempo que faz parte de um passado mítico.
Em seu primeiro romance, A Canção de Aquiles, Madeline Miller recontou o cerco de Troia do ponto de vista de Pátroclo, cuja morte Aquiles vingou desencadeando uma destruição enorme em Troia e especialmente para Heitor, que teve o corpo amarrado a uma carruagem e arrastado ao longo das muralhas da cidade. Homero não explicou a natureza exata de um relacionamento que poderia desencadear tal reação.
Miller fez disso uma história de amor, terno e leal, e ao mostrar claramente o que a arrogância/hybris de Aquiles lhe custaria, não só deu intimidade, mas também delineou o arco da verdadeira tragédia. A Canção de Aquiles agora existe em 23 idiomas e, apesar da desaprovação dos mais conservadores, ele entregou a estrutura de um romance para jovens adultos com a alma da Ilíada de Homero.
Um dos aspectos mais marcantes no primeiro romance de Miller é a maneira como a escritora apresenta a desigualdade na distribuição do poder entre os gêneros, descrevendo como os guerreiros se comportaram quando uma mulher bem nascida (Helena) chegou à puberdade e como guerras foram travadas em torno disso. Isso pode ser visto especialmente em sua caracterização de Thetis, uma jovem ninfa dada pelos deuses ao mortal Peleu.
O herói se tornaria um homem gentil e bem amado por seu povo, no entanto, foi obrigado pelos deuses a consumar o casamento com a ninfa usando a força. O estupro resultou em Aquiles, “o melhor dos gregos”, e tornou a ninfa tão fria e severa com os seres humanos como as profundezas do mar em que vivia.
Circe, personagem central do segundo livro, também é uma ninfa. “Noivas, as ninfas foram chamadas, mas não era assim que o mundo nos via. Fomos um banquete sem fim, expostas sobre uma mesa, lindas e suculentas. Péssimas em fugir”.
Filha de uma náiade e Hélio, Circe é imortal, e o relato em primeira pessoa também nos entrega uma série de “grandes sucessos do mundo grego antigo”: Prometeu e seu castigo, Scylla e Charybdis, Hermes, Apolo, Atena, Dédalo e Ícaro, Ariadne e o Minotauro (que é sobrinho de Circe), Medeia e Jasão e o Velocino de Ouro, por fim, claro, Odisseu que no livro X da Odisseia encontra Circe ao desembarcar em sua ilha, Eana, e a feiticeira transforma alguns de seus marinheiros em porcos.
Não diferente da tradição dos mitos gregos, os deuses são retratados como vaidosos e vingativos, nascidos repletos de “excelências”, como Circe, “eles encontram sua fama provando o que podem provocar: destruição de cidades, guerras, pragas e monstros”. Se isso fosse tudo o que havia (e no início do romance, é tudo o que parece haver), Miller estaria lidando com um problema familiar do realismo mágico: se literalmente alguma coisa puder acontecer, se sempre houver algum novo monstro ou deus com novos poderes, então por que se importar com uma história que reúne uma série de episódio do mundo grego? Mas Miller também sabe que, como no melhor realismo mágico, o poder real não reside nos fatos ostensivos da narrativa, mas em sua psicologia.
E é a partir daí que Miller constrói sua história, na vida emocional e conquista da independência de uma mulher. Desde o momento em que Circe percebe que é desprezada por “não ter nenhum valor de troca” para seu pai, ela segue em uma jornada solitária de reclusão.
Claro que, aqui, ela basicamente é punida por ser mulher e ousar demonstrar o poder que tem, mas este fato não deixa de ser uma escolha também. A heroína escolhe a reclusão ao invés de permanecer invisível nos salões de seu pai. Em seu caminho, ela se depara uma série de acontecimentos que se acumulam em experiências que vão desde fúria auto-prejudicial até alegria e solidão que acompanham sua conquista por independência.
Além disso, ela também se depara com os desafios da maternidade solo e, sem romantização, a feiticeira precisa lidar com a confusão de sentimentos que o processo de ser mãe envolve. Neste contexto, transformar marinheiros em porcos não é apenas mais um obstáculo para superar Odisseu, que venceu tudo, mas uma autodefesa necessária.
O que Circe ganha com sua imortalidade é, principalmente, o que se ganha em qualquer vida longa, se há disposição em olhar para si mesmo e se reconhecer. “Conhece a ti mesmo”, já dizia o Oráculo. Circe aprende a importância de equilibrar confiança e autoproteção e, com todas essas histórias que constroem sua jornada, nós aprendemos que Jasão pode até ser bonito e forte, mas está “perdido nos detalhes de sua própria narrativa”.
Aprendemos também que Hermes pode até ser um bom amante, desde que nunca se cometa o pecado de ser chato. Vimos que Odisseu é “justo, direto, leal, mas também pode ser enganador e ‘tecer suas histórias’ muito bem e isso não faz dele menor. “Ele me mostrou suas cicatrizes e, em troca, ele me deixou fingir que eu não possuía nenhuma”.
Descobrimos que até os deuses melhorariam experimentando “culpa e vergonha, remorso, ambivalência” – que são outras caminhos para conhecer a si mesmo, mas a maioria deles nunca faz. Essa magia é maior que a divindade, porque a magia é feita de materiais simples, trabalho e vontade. Nenhuma quantidade de divindade compensará a prática e nenhuma quantidade de poder substituirá um amor sólido.