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A FIlha Perdida foi o primeiro livro da Elena Ferrante que li e a experiência foi intensa… para dizer o mínimo.
Desde o início do romance, a narradora admite que é incapaz de compreender o que lhe aconteceu: “as coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender”.
A filha perdida é o terceiro romance de Elena Ferrante. Foi lançado no Brasil em 2016 pela editora Intrínseca, com tradução de Marcello Lino. Como todos os livros de Elena, este também é narrado em primeira pessoa. A narradora da vez é Leda, uma mulher prestes a completar quarenta e oito anos.
Leda vive em Florença, é professora universitária e tem duas filhas adultas, Bianca e Marta, que se mudaram recentemente para o Canadá, passando a viver com o pai, de quem Leda é separada.
A princípio, Leda parece entusiasmada com a ideia de estar livre do cotidiano que a maternidade lhe exigia. Mas, ao tirar férias e viajar para uma pequena cidade na costa jônica da Itália, a personagem se vê envolvida em uma dinâmica complexa entre uma jovem mãe, Nina, sua filha pequena, Elena, e uma boneca, Nani.
Em uma de suas antologias de texto, Ferrante conta que a gênese desse romance está na mitologia grega:
“Houve uma fase em que planejei escrever sobre a futura belíssima Helena de Tróia como uma menina feiosa, cheia de terrores animais e esmagada pelo fulgor da mãe, Leda, amada por Zeus sob a forma de cisne. Mas o mito é muito complexo, com uma variante mais complicada do que a outra, e não fiz nada nesse sentido. Em A Filha Perdida, ficaram os nomes: Elena e Leda vêm daí.”
A necessidade da construção de uma tradição de histórias de mulheres
Desde Medeia, Helena, Dido, Penélope e muitas outras, todas foram estabelecidas e interpretadas como o outro em seus mais diversos propósitos e facetas. Medeia por ‘demonizar’ a figura e o papel da maternidade, muitas vezes lida como “a amante ciumenta”. Helena como o objeto do desejo traído e cuja ausência foi capaz de causar grande destruição para acalmar a ira dos homens. Dido a amante abandonada. Penélope, a boa esposa que espera pacientemente e engendra planos mirabolantes para defender sua casa e seu casamento contra todos aqueles que buscam balançar as estruturas da instituição. As virgens que morrem em sacrifício para o sucesso da empreitada de um homem. Os exemplos são infindáveis.
Suas vidas e narrativas revelam o peso das instituições sociais que, desde então, empurram as mulheres na literatura para um fim trágico.
Sobre a necessidade de construção de uma tradição literária feminina, Ferrante declara que para uma escritora entregar o máximo de si a um trabalho é necessário impor a si mesma uma espécie de descontentamento deliberado, uma vez que a tradição masculina propõe uma forma própria para tudo o que é possível.
Dessa forma, é preciso conhecer e explorar a tradição a fim de aprender a recusá-la.
A batalhar com a matéria bruta da nossa experiência com mulheres exige sobretudo competência. Além do mais, é necessário combater a submissão e buscar uma genealogia literária nossa com ousadia, ou melhor, com soberba.
FERRANTE, 2003, em Frantumaglia: os caminhos de uma escritora.
Maternidade, liberdade e culpa em A Filha Perdida
Ao longo da narrativa é perceptível o esforço de Leda em entregar para as filhas o que ela entende como um ideal de maternidade, em que a mulher precisa abdicar da vida social em prol dos filhos e da casa, pensamento que tem base nos discursos religiosos e perpassam por toda a sociedade ocidental.
Contudo, a dedicação somada às concessões a consomem e, em determinado momento, numa espécie de grito de liberdade, a protagonista decide abandonar a corrida por esse ideal inalcançável, viver um relacionamento com outro homem e se dedicar à sua carreira acadêmica. Porém, a culpa pela decisão é uma constante na narrativa.
O que eu tinha feito de tão terrível, afinal? Anos antes, havia sido uma garota que se sentia perdida, isso era verdade. Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu tivesse caindo para trás na direção da minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava. Oportunidades perdidas. As ambições ainda eram ardentes e alimentadas pelo corpo jovem, por uma fantasia que somava um projeto a outro, mas eu sentia que meu anseio criativo era castrado cada vez mais pela realidade das obrigações da universidade e pela necessidade de explorar as oportunidades de uma possível carreira. Eu me sentia reclusa dentro da minha própria cabeça, sem a possibilidade de me pôr à prova, e estava frustrada.
FERRANTE, 2016, em A Filha Perdida.
O medo de ocupar e desempenhar o papel de sua mãe e de todas as mulheres “mudas” de sua descendência é evidenciado pelos flashbacks que Leda apresenta de sua infância. Bem como mãe de duas jovens, ela é uma filha que acumula incertezas, frustrações e traumas e a temporada que passa na praia deixa sua cabeça “repleta de imagens e vozes” que vêm e vão num eterno movimento mãe-filha, existência e não-existência.
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