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“Emily, como você escreveu ‘O Morro dos Ventos Uivantes?’”, pergunta Charlotte à irmã.
Sim, se trata de um diálogo entre as irmãs Brontë e Emily, filme escrito e dirigido pela cineasta Frances O’Connor, busca reconstruir e mesmo fazer um estudo a respeito da autora de um dos maiores clássicos ingleses.
O longa é repleto de magia, aventura e impetuosidade concentrados em sua personagem principal, interpretada por Emma Mackey.
Chamo de personagem porque é justamente o que ela é. Não estamos falando da figura histórica de Emily Brontë, mas antes, de uma interpretação possível que surge a partir da leitura de sua obra mais conhecida e o que podemos conhecer a respeito da autora.
Ao contrário de muitas adaptações que temos visto nos últimos anos, Emily parece tudo menos um livro. Algo muito positivo, pois traz para a cena um novo diálogo com a obra clássica.
Emily é uma força da natureza, um espírito tempestuoso. Contudo, como explicar que a autora de um dos romances mais febris do século XVIII, viveu praticamente reclusa no campo, rodeada por um pai conservador e em um ambiente religioso?
Ao reimaginar atentamente Emily Brontë como uma jovem infeliz de tempos distantes, a principal aliada de O’Connor é sua estrela, Emma Mackey.
A princípio, a modernidade de Mackey nos parece quase um erro de seleção de elenco, e não apenas porque a atriz é mais familiar da geração Netflix, em “Sex Education”. Seu olhar parece muito direto, sua mandíbula muito firme para se encaixar facilmente nos ambientes recatados da vida no campo rigidamente respeitável da década de 1840.
Porém, Mackey foi capaz de usar justamente estes pontos para transmitir o deslocamento de sua personagem e ao mesmo tempo mostrar que aquele ambiente é todo o mundo que ela conheceu, que ela o ama profundamente e está completamente admirada por ele.
A maior parte de suas interações é envolta por um sentimento de incompreensão, no sentido de por que coisas que são tão claras para ela devem parecer tão peculiares para todos os outros.
Exemplo disso, é que em uma explosão de frustração por sua falta de conformidade às normas, a irmã mais velha de Emily, Charlotte (Alexandra Dowling), revela que ela é conhecida na comunidade como “a estranha” entre os irmãos Brontë.
Emily até desmaia errado, como faz no flashforward de abertura. Não desmaiando delicadamente, mas caindo sob seu próprio peso, precisando ser arrastada para um sofá por Charlotte e Anne (Amelia Gething), a irmã mais nova e pacificadora.
Enquanto Anne corre para encontrar seu pai (Adrian Dunbar), um reverendo local inflexível, mas não cruel, Charlotte tenta extrair dela a inspiração secreta por trás do romance “básico e horrível” de Emily. “Por que é tão difícil para você acreditar que sua irmã possa ter escrito algo de mérito?” Emily sussurra.
E assim O’Connor, trabalhando em seu próprio roteiro sem grandes floreios, reconhece maliciosamente o paradoxo de um filme que quer nos fazer acreditar que Emily Brontë teve uma vida interior vívida de forma intensa o suficiente para ter criado “O Morro dos Ventos Uivantes”.
Nesse sentido, além de trazer novos elementos para o relacionamento – um tanto incestuoso – com o irmão devasso e completamente perdido Branwell (Fionn Whitehead), o longa desenvolve um romance devastador entre a autora e William Weightman (Oliver Jackson-Cohen), um párodo da igreja da região que acabou de chegar.
É claro que a aventura amorosa, retratada com muita sensualidade, não pode durar. Este fato, somado ao declínio de Branwell no alcoolismo, no uso de drogas e consequente afastamento da irmã, faz com que Emily se veja envolvida em muita dor.
Além de um romance condenado, o filme também é uma investigação singularmente comovente sobre os mecanismos de relacionamentos entre irmãos que são forjados no estilo ‘amor de alma gêmea’, mas tingido de rivalidade e rancor.
A fotografia é lindíssima, mas nunca embelezada.
Algo como um naturalismo moderno muito sensível que transmite para quem está assistindo os sentimentos mais diversos que o ambiente pode despertar.
Já nos cenários interiores, vez ou outra, encontramos a câmera como se estivesse instalada de forma pensativa, observando os personagens enquadrados em um cômodo ou em uma janela.
Por fim, ainda podemos comentar a respeito de uma possível confusão na linha do tempo histórica. No filme, Branwell morre um pouco antes de Emily escrever sua obra-prima, não depois.
Além do mais, fica implícito que “Jane Eyre”, não mencionado no longa, teria sido escrito e publicado depois da morte de Emily, quando na verdade ele foi o primeiro romance publicado dos Brontë.
Contudo, vale destacar que Emily, a estreia de O’Connor, não tem nenhuma pretensão de recriar a realidade. Ao contrário, o longa é bem-sucedido em um nível mais complexo, entregando uma Emily que mais parece um gigante de sentimentos e camadas, que não escreveu um livro porque um romance da vida real revelou sua natureza apaixonada, mas que adoraríamos imaginar tendo um caso tão grandioso, porque ela sempre foi a mulher com “ventos uivantes” dentro dela.